quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Gozo II


Desvia o mar a rota

do calor

e cede a areia ao peso

desta rocha

Que ao corpo grosso

do sol

do meu corpo

abro-lhe baixo a fenda de uma porta

e logo o ventre se curva

e adormece

e logo as mãos se fecham

e encaminham

e logo a boca rasga

e entontece

nos meus flancos

a faca e a frescura

daquilo que se abre e desfalece

enquanto tece o espasmo o seu disfarce

e uso do gozo

sua melhor parte


Maria Teresa Horta

terça-feira, 27 de outubro de 2009

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Poema à mãe

"No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;
Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite.
Eu vou com as aves."

Eugénio de Andrade

Canção

"Pus o meu sonho num navio

e o navio em cima do mar;

- depois, abri o mar com as mãos,

para o meu sonho naufragar.


Minhas mãos ainda estão molhadas

do azul das ondas entreabertas,

e a cor que escorre de meus dedos

colore as areias desertas.


O vento vem vindo de longe,

a noite se curva de frio;

debaixo da água vai morrendo

meu sonho, dentro de um navio...


Chorarei quanto for preciso,

para fazer com que o mar cresça,

e o meu navio chegue ao fundo

e o meu sonho desapareça.


Depois, tudo estará perfeito;

praia lisa, águas ordenadas,

meus olhos secos como pedras

e as minhas duas mãos quebradas."


Cecília Meireles

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Acordei a precisar de Amor e de Saudade


Amanhece.

Abrir-me para a janela em frente, é o meu primeiro cigarro.
Levo comigo o retrato numa moldura apertada contra o peito.
Sei que também queres este nosso momento.
Queremos ambos este beijo.
Cedo, os sentidos acordaram e levitaram no meu quarto.
Vou usá-los no monólogo de hoje e abafar o silêncio.
Falo contigo no passado, que é quando ainda te lembro.

O passado é surdo e que importa isso?

Já começou, sim, já.
Acordei a precisar de amor e de saudade.
Por isso, vou usar-te apenas mais hoje.
Se o fazes, não sei, nem isso importa, usa-me.
Podes usar-me sempre, mas só para ti.
Escutas a música que aí vem? Abraça-me ainda.
É a nossa música e a nossa voz.
Aposto que consegues lembrar-te do meu sorriso.
Isso...não tenhas pressa em me esquecer.
Lembras-te do meu sorriso?
Então fica, não vás embora já, eternamente.
Vive comigo. Só eu sei das tuas mãos...
Deixa-me abraçar-te para a janela em frente.
Ouve o momento e o eco do momento...
Ouve-nos no meio destas paredes.
Olha, lá vão as palavras no silêncio...
Bebe-me e ao vinho, como fazias.
Fala comigo. Afaga os meus cabelos, sente o molhado do meu calor.
Consegues escutar o prazer que eu te digo nestas palavras? É a sério.
Este amanhecer é nosso.
Como poderia deixar-te passar...
Não, hoje não!
Vens comigo até acabar.
Quando? Quando não sei...


Rita

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Klimt

Não, não é cansaço...

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar.
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...
Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Álvaro de Campos

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Significado



Havia um homem na rua a distribuir pequenos pedaços de papel.
Era uma tarde de chuva, era Outono.
Vestia preto, tinha um chapéu e os olhos pintados de negro.
Era um homem bonito sem ser bonito, era diferente.
Fiquei naquele canto a observar…estava intrigada.
Fumava cigarros e ele distribuía papéis.
Tinha os dedos compridos e as unhas bem tratadas.
Gosto de mãos. Gostei das mãos dele. Grandes.
Simpatizei com aquele homem.
Quem seria, o que pretendia, porque fazia aquilo?
As pessoas que passavam pisavam os papéis como pisam pedras.
Era um homem na rua a distribuir palavras.
Palavras. Uma por cada papel.
Aproximei-me…
O nosso olhar cruzou-se (mero acaso?)...
Ele, olhou bem fundo nos meus olhos.
E a palavra?
O meu pedaço…estava em branco.
Sorrimos um para o outro.
Eu percebi e ele percebeu.
Não há palavra. Apenas branco.
Significado.

Rita

...


"Entro no teu espaço invadido de cores e uma cidade espera-me sobre o cavalete, vermelha e luminosa, como de descoberta. Os teus olhos acendem um soluço. Palavras tensas de solidão e aventura. Qual o caminho que conduz à vertigem, à construção? Qual o medo? Na sombra dos segredos cresce uma água indefinida, de mansa loucura. A crispação do silêncio escorrrega sobre o corpo. A tua muda interrogação. De noites sobre areias interditas, violadas, a tactear a exacta dimensão da brisa nos cabelos, nos interstícios mais secretos da esperança. Uma mulher ergue-se vitoriosa e jubilante dos teus dedos em fúria. Rosto de sensualidade quase animal, onde aflora o desespero maior. O teu gemido diz mãe. Ou limpidez. O teu grito vibrante contra as encostas do conflito abre brechas na angústia, entornando cores, reduzindo sonhos, azuis de horas quebradas, cinzentos de embriaguês, brancos de ausências ou fugas verticais. Entro no teu espaço de sombras e relevos. Vejo-te deusa da dor mais solitária. Da promessa. Um dia, penetrarás na cidade imóvel sobre a tela e o teu rosto será o vermelho intenso da conquista."

Maria Graciete Besse